Cavallari & Rezende -Advogados e Associados

Breves comentários quanto a transferência de créditos de ICMS e a Lei Complementar n.º 204/2023

O Supremo Tribunal Federal, em 19 de abril de 2021, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC 49 reconheceu a inconstitucionalidade parcial do artigo 11,  §3.º, II, da LC n.º 87/96, firmando entendimento de que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica equivale à mera movimentação física e, portanto, não há incidência de ICMS.

 

Contudo, quando ocorreu esse julgamento, não houve modulação dos efeitos dessa decisão, assim como nada se estabeleceu quanto a possibilidade de transferência  de créditos entre esses estabelecimentos, o que até então era autorizado e por conseguinte gerava resultados financeiros positivos para as empresas.

 

Cabe mencionar que o tema em questão já havia sido pacificado no cenário jurídico nacional, de modo que tanto o STF quanto o STJ reconheciam, há muito tempo, que não deve haver a incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias e bens entre estabelecimentos de mesmo titular. E foi nesse sentido que em 1992 o STJ formulou a Súmula 166, nestes exatos termos: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.

 

Embora a discussão já estivesse bastante balizada pelo poder judiciário, voltou à tona após o novo acórdão proferido em 19 de abril de 2023, pelos Ministros do STF, quando do julgamento dos embargos de declaração ocasionados justamente pela ausência de manifestação quanto a possibilidade de transferência de créditos entre as empresas, em que ficou determinado que a decisão proferida na ADC 49, teria eficácia apenas à partir do exercício financeiro de 2024, salvo para as hipóteses de processos administrativos e judiciais em trâmite até o julgamento da ADC 49 que ocorreu em 19/04/2021.

 

Isto quer dizer que, apenas à partir do ano de 2024 os Estados poderiam deixar de exigir o ICMS nas transferências interestaduais entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Nesse julgamento dos embargos de declaração, a Suprema Corte proferiu a decisão resultando nos seguintes entendimentos:

  • Não deve haver incidência de ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular;
  • O contribuinte tem direito de manter os créditos de ICMS referentes às operações anteriores, pois não há incidência desse imposto nas operações de transferência de mercadorias entre estabaleciemntos do mesmo titular. Portanto, não o que se falar em estorno de crédito devido ao fato de as saídas serem isentas ou não tributadas;
  • O contribuinte pode transferir os créditos de ICMS gerados em decorrência de operações anteriores. A decisão ainda estabelecia que os Estados deveriam diciplinar o tratamento dos mencionados créditos e, caso não o fizessem até o prazo limite de 31/12/2023, os contribuintes ficariam autorizados a transferei-los mesmo sem a autorização dos estados.

 

De se concluir, pela leitura do acórdão, que a incidência de ICMS nas operações interestaduais entre os estabelecimentos do mesmo titular é inconstitucional, sendo vedada sua cobrança a partir do exercício financeiro de 2024, bem como que é garantida a manutenção dos créditos referentes às operações anteriores, sendo facultado ao contribuinte transferir tais créditos de ICMS entre os seus estabelecimentos.

 

Por conseguinte, em novembro de 2023 foi editado o Convênio CONFAZ 174/2023, que disciplinava sobre a transferência de créditos de ICMS nos casos de transferências interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contruibuinte, no entanto, referido Convênio foi rejeitado, em razão da não ratificação pelo Estado do Rio de Janeiro.

Para contornar esse problema, foi editado em 1 de dezembro de 2023 o Convênio CONFAZ 178/2023, com redação bem similar ao anterior, dispondo que na remessa interestadual de bens e mercadorias de estabelecimentos de mesma titularidade, é obrigatória a transferência de crédito de ICMS para o estabelecimento de destino, conforme estabelecido em sua Cláusula Primeira.

 

De modo que com base na leitura da decisão do STF acerca do tema e do acordo celebrado entre os estados – CONFAZ, verifica-se pontos obscuros quanto às disposições do Convênio CONFAZ 178/2023, que regulamentou outras regras, além de tornar obrigatória a transferência, sem qualquer opção para o contribuinte, estabeleceu fixação de alíquota e a base de cálculo desses créditos, o que por si só já o torna questionável perante o judiciário por duas principais razões: a primeira, porque a decisão da ADC 49 não determinou a obrigatoriedade da transferência dos créditos de ICMS, mas tão somente a sua regulamentação; e a segunda, porque o convênio ultrapassou a sua competência regulamentar para tratamento desses créditos, principalmente quanto à sua base de cálculo, que somente pode ser definida por Lei Complementar, conforme disposto no artigo 146, III, alínea “a”da Constituiçao Federal, o que resulta e abre margens para interpretações distintas e a consequente insegurança jurídica do contribuinte.

 

Por essa razão, em 29 de dezembro de 2023, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Complementar n.º 204/2023 que alterou o inciso I, incluiu o §4.º ao artigo 12 e, revogou o §4.º do artigo 13 da Lei Kandir – LC 87/1996, para estabelecer que a transferência, inclusive interestadual, de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não constitui fato gerador de ICMS, sendo assegurada a transferência dos créditos pelo Estado de destino, limitado à proporção das alíquotas interestaduais sobre o valor da transferência e, pelo Estado de origem, em relação à sobra decorrente da diferença entre o crédito transferido e o originado das operações e prestações anteriores.

 

Importante ressaltar, que a LC 204/2023 confirmou os excessos praticados pelo Convênio – CONFAZ 178/2023 constante nas Cláusula Primeira e Cláusula Quarta, vez que efetuada a regulamentação, a lei não fixou como obrigatória a transferência e nem mesmo definiu o conceito de valor atribuído à operação de transferência que é a base de cálculo dos créditos.

 

Há que se ressaltar ainda, que a limitação dos créditos vinculada às alíquotas estaduais prevista na LC 204/2023 pode ser questionada diante das disposições contidas no artigo 155, §2.º, I da Constituiçao Federal, que garante a não-cumulatividade do tributo mediante a compensação do que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo Estado ou por outro Estado ou pelo Distrito Federal.

 

Importante esclarecer que embora já tenha acontecido as regulamentações subsequentes ao julgamento da ADC 49, ainda resta pendente o julgamento de novos embargos de declaração opostos na ação, logo a matéria segue indefinida e poderá haver novos desdobramentos.

Daniele Cavallari – advogada, especialista em Direito Tributário – Pós graduada pelo IBET.

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