Cavallari & Rezende -Advogados e Associados

ABANDONO AFETIVO – O AMOR PODE SER COMPRADO?

A família é a célula mater da sociedade.  (Ruy Barbosa)

Não foi sem motivo que o legislador constitucional lhe dedicou um capítulo. O indivíduo nasce dentro de uma família, que é a natural, aí floresce e se desenvolve até constituir sua própria família; numa e noutra está sujeito a várias relações de seu interesse imediato, tais como o poder familiar, o direito de obter e a obrigação de prestar alimentos a seus parentes, e, se a família originou do casamento ou de união estável, o dever de fidelidade e de assistência decorrente de sua condição de cônjuge ou companheiro etc.

O tema busca delimitar-se na análise da relação entre pais e filhos e suas consequências. Melhor adequando, entre pais que abandonam seus filhos afetivamente por inúmeros motivos, causando danos à personalidade da criança, haja vista que, na grande maioria dos casos, não há a assimilação pelo filho(a) quanto à situação ocorrida, obrigando-se, pelas circunstâncias, a suportar calado a rejeição e indiferença sofrida, exteriorizando seus sentimentos nas mais diversas formas de patologia, como um grito de socorro.

Para a responsabilidade civil por abandono afetivo, surgiram jargões descontextualizados e que causavam comoção social pelos não adeptos à tese, como, por exemplo, “amor não se compra”, “não se pode monetizar as relações familiares”, “amor não tem preço”, “o Estado não pode obrigar ninguém a amar” etc.

Esta postura revela nitidamente a tentativa de demonstrar à sociedade e aos menos avisados que a família é impermeável ao instituto da responsabilidade civil. Filhos do abandono e da indiferença passaram a bater às portas do judiciário para reclamar uma resposta as suas dores. Seus aniversários à espera do pai (na maioria das vezes é o pai quem abandona os filhos, embora não haja exclusão da responsabilidade por parte da mãe), telefones que nunca tocaram, desigualdade de tratamento em relação aos demais irmãos que gozam da presença do pai, passeios frustrados pelo não comparecimento injustificado, a ausência de um ombro para compartilhar as dificuldades e vibrar com as vitórias, lacuna de um modelo da figura paterna ou materna no lar, autoestima inexistente, insegurança, carência afetiva e afagos nunca recebidos, anos de tratamentos psicológicos, terapias e várias patologias desenvolvidas.

A reparação pelos danos causados de forma pecuniária não significa que o sentimento da pessoa voltará ao mesmo do início, de antes de o dano ser causado, mas compensará de alguma forma pelo mal que lhe foi causado.

O dano patrimonial se configura quando pode ser apreciado em uma perspectiva exclusivamente econômica, ensejando, quando não for o caso de reparação in natura, indenização pecuniária ao lesado.

Quando a ofensa não se relaciona ao patrimônio do sujeito, mas afeta suas emoções, transgrede afeições legítimas, violando o equilíbrio psíquico e espiritual, atinge a honra, a vida privada, a intimidade e a imagem das pessoas, produzindo, ou não, “dor, angústia e humilhação.

A partir do ano 2000, a temática da responsabilidade passou a ser debatida em todos os segmentos jurídicos e acentuou-se após a publicação do atual Código Civil.

Pedidos de indenização por quebra dos esponsais, dano moral por infidelidade, por macular a imagem do outro consorte em público, deixando-o no altar, reparação por contágio do vírus HIV, já se ouve abordar até questões envolvendo direitos da amante.

Iniciou-se o debate jurídico no cenário nacional. É possível a reparação civil por abandono afetivo?

O sujeito passivo da demanda poderá ser tanto o pai quanto a mãe, biológico ou civil, ou ainda um terceiro que detenha formalmente a guarda da criança. Explica-se, o pai e mãe são os primeiros a responderem pela função de educação, criação e cuidado dos filhos.

Equiparam-se, mesmos aqueles que optam pela adoção, posto que ali na disposição para a paternidade ou maternidade e diante do encargo assumido não lhe é sonegado nenhum direito, restando a mesma reciprocidade quanto aos deveres. Igualmente insere-se nesta categoria o pai registral, que acaba por certo período desenvolvendo a socioafetividade com a criança, a assume de forma pública, registrando-a como filho e posteriormente a abandona.

Não obstante, sendo a fase da adolescência um período marcado por novas descobertas e pela cristalização dos últimos moldes da formação do caráter, é a parcela social que mais sofre as consequências da “banalização do afeto”.

Um exemplo de tal circunstância são as crianças e adolescentes filhos de pais separados, onde, na maior parte das vezes, um dos genitores tenta substituir a necessidade da sua presença afetiva, pelo repasse de verbas pecuniárias, imaginando que, o simples ato de pagamento de alimentos substitui a necessidade do afeto vinculado diretamente ao exercício do poder familiar, sendo que tal prática é comumente protagonizada pela figura do pai.

Vislumbra-se que o afeto não pode mais ser tratado apenas como uma “vírgula” dentro do processo tão amplo que envolve a arte de educar os filhos.

Interessante observar que, durante muito tempo, as violências silenciosas praticadas contra o “corpo moral e afetivo” daqueles tutelados, não eram identificadas e, nem mesmo, havia uma preocupação em tentar associar os diversos transtornos psicológicos. Importante salientar que os cuidados relativos ao campo da afetividade não estão as margens dos diplomas legais, sendo tratado diretamente pelos dispositivos existentes na Carta Magma e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesse diapasão é que diversas são as decisões judiciais imputando o dever de indenizar àqueles que sofreram ou sofrem com o abandono afetivo, principalmente derivado dos pais para com os seus filhos, inclusive, com diversos casos até mesmo de destituição do poder familiar.

Assim, é possível perceber a imensa diferenciação nos conceitos e interpretações que valoram a natureza de “CUIDAR” e “AMAR”. Sendo que “amar” é algo subjetivo que não se pode obrigar ou condenar alguém pela ausência de tal sentimento; doutra banda, a ausência do “cuidado” é algo que afeta diretamente os regimentos legais, não se situando em um “poder ser”, mas em uma obrigação legal, daí decorrente a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário. Logo, amar é uma “faculdade” ou um “poder ser” e cuidar é um “dever” uma obrigação.

Assim, cumpre mencionar que não se trata também de querer atribuir um valor monetário a um sentimento, mas tão somente minorar os seus prejuízos decorrentes de uma ofensa a um dispositivo legal que determina o dever de “cuidar e amparar”.

O afeto está diretamente relacionado às relações sociais. Não sendo manifestação atrelada restritivamente ao individualismo, a caracterização das relações afetivas que demonstram grande desenvolvimento no âmbito social.

Por fim, seja no senso comum, no dia a dia das famílias ou até mesmo nos tribunais, a questão do abandono afetivo sempre deverá encontrar respaldo e olhares que prestigiem a importância desse tema, que envolve toda uma questão de construção de uma sociedade melhor e emocionalmente curada dos transtornos socioafetivos, a fim de que possam verdadeiramente encontrar a saúde integral do ser que é o bem-estar biopsicossocioespiritual.

 

Thiany  Rezende Motta é advogada, especialista em Processo Civil e Direito Civil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *